Assunto pouco falado no Brasil, e muito menos escrito, é o referente a certificação da autenticidade de obras de arte. Em época de crescente valorização do mercado de artes plásticas, ingresso de novos colecionadores, profissionalização do setor como um todo, e principalmente de crescente facilidade de reprodução de objetos – com a popularização da impressora tridimensional – adquire relevo a necessidade de segurança de que a obra adquirida corresponda ao que é anunciado, ou ao que se entende como sendo o objeto pretendido.
Não são raros os referenciais mundiais a respeito de identificação e catalogação de obras artísticas. As obras de Mozart foram relacionadas cronologicamente por Ludwig von Köchel, em 1862 e até hoje essa lista[1] vem sendo atualizada. O símbolo “K” e o número respectivo são quase sempre acrescidos ao título da obra, como por exemplo a lindíssima Sinfonia nº 40, que é a “K 550” da lista. Já nas obras de arte é difícil identificar todas as obras produzidas por um determinado artista, muito embora as fontes de pesquisa e documentação tenham se aprimorado com a divulgação de arquivos pessoais e de museus, onde geralmente se busca construir a trajetória comercial de cada trabalho do criador. A Fundação Giacometti tem uma base de dados de 1576 obras do célebre e valorizado artista suíço Alberto Giacometti, e é solicitado que se atualizem constantemente as informações[2].Com base nela, em julgamento na França, em 2009, foi recusada a autenticidade de uma escultura em bronze, atribuída a Giacometti, mas que fora feita a partir do produto final em bronze (surmoulage) e não do original em gesso (plâtre).[3]
Para combater a falsificação de obras de Portinari localizei o Projeto Pincelada, que não sei se está operante, mas na internet se identifica da seguinte forma: ”O Projeto Pincelada, como o próprio nome diz, estuda a pincelada do artista. Segundo João Candido Portinari, a pincelada é mais do que a caligrafia do artista, ela também traduz a forma específica — e inconfundível — de um artista de misturar a tinta na palheta, podendo ser comparada à impressão digital.”[4]
Por serem bens móveis e também por força da lei de direito autoral brasileira, as obras de arte dispensam o registro público para a prova de sua transferência de propriedade; basta o pagamento do preço e a entrega (denominada em direito, tradição) do bem para que ela mude de dono. No entanto, numa negociação, além da estipulação das condições de pagamento, de transporte, do local da entrega, do estado físico da peça, a essencial é a que diz respeito à autenticidade da obra. Para situar a questão num panorama mais amplo, a verificação da autenticidade pode variar segundo o tempo de elaboração da obra; obra antiga, na qual o estilo de época é o fator de interesse preponderante, e obra contemporânea, no qual a autoria determina a sua relevância. E no quesito obra contemporânea, o fato de o autor estar vivo ou já falecido.
Em relação às obras pode ser o caso de se tratar de obra única (um quadro a óleo, por exemplo), ou de múltiplos, como gravuras impressas a partir de uma pintura; determinado número de esculturas em bronze fundidas em modelo de gesso, por exemplo. O assunto se restringe a uma questão de volume, forma e originalidade. Não tratarei aqui das obras imateriais contemporâneas, como projetos, vídeos, ou obras efêmeras, cuja certificação de autenticidade é mais complexa, como no caso de Dan Flavin, artista que vende o projeto de sua obra[5] e um certificado de autenticidade é essencial como peça integrante do trabalho comercializado.
A autenticidade se desdobra em dois conceitos: autenticidade e paternidade que vão exigindo um certificado específico para comprovar essas características. Uma série de reproduções de quadro de artista, com numeração autorizada, é autêntica como reprodução; mas se o número de exemplares exceder o autorizado, os excedentes – ainda que de alta qualidade de impressão – deixam de ser reprodução e passam a ser a simples cópias, não autorizadas, e entram no terreno do ilícito. Já a paternidade vincula o nome do autor ao trabalho comercializado, de modo a que a sua assinatura, ou sinal de identificação utilizado para sua identificação, assegurem, ou no mínimo indiquem, ser a obra efetivamente de autoria do artista anunciado.
Os casos variam muito e se tornam notórios, como o de esculturas atribuídas a Renoir e Richard Guino, feitas em 1917, quando este executou os modelos concebidos por aquele, que já estava com as mãos paralisadas, e assim descrita em leilão da Christie's. Segundo o autor francês Henri Desbois, Renoir seria o autor no plano literário e Guino no plano artístico[6]. A casuística é farta e a jurisprudência já analisou várias situações em que as obras nem sempre correspondem ao anunciado, variando em sutilezas relevantes.
O ponto principal consiste, basicamente nas operações de empréstimo e comércio das artes, em, passe o óbvio, corresponder a obra artística, o chamado suporte físico (quadro, escultura), efetivamente à autoria que lhe é atribuída, seja na ficha de um museu, seja numa exposição de leilão, ou numa negociação particular. No caso de coleções particulares, em que as obras estão no domínio de famílias por tempos, e que muitas vezes foram doadas informalmente pelos próprios autores dos trabalhos, não é costumeira a busca e guarda de certificados, mas quando da eventual comercialização, é recomendável essa prática.
Vários direitos integram uma operação de venda de obra de arte: o do consumidor de ser informado sobre a natureza e condições da obra (Código do Consumidor, arts. 6º, II e 31), o do comprador (além de ser consumidor) de não ser enganado quanto ao objeto que está adquirindo, o que configura erro, circunstância que justifica a anulação da venda (Código Civil, art. 138), e do autor do trabalho, pois a família do artista tem direitos morais e patrimoniais sobre a venda da obra (Lei de Direito autoral, art. 30, 38 e 43).
Então, por ocasião da oferta de comercialização da obra, o catálogo de venda, em leilão ou em galeria, deve descrevê-la corretamente, com a maior clareza e precisão, em termos de, primeiramente, autoria, e mais estado físico, data da confecção, material utilizado e se possível a cadeia de comercialização, e ainda disponibilidade de acesso, sob pena de infringir o direito do consumidor. A boa documentação da sequência de vendas constitui fator de grande segurança e, certamente, de valorização das obras postas em comércio.
No que diz respeito à coisa comprada, pelo ângulo do direito de obrigações, se a obra não for exatamente aquela que o comprador imaginava ser, em termos de todos os itens acima, além de ofender o direto do consumidor, pode gerar o direito de anulação da venda por erro essencial sobre a coisa, circunstância grave, pois consiste na venda de objeto que não era o imaginado, ou anunciado.
Por último, ainda, sob a ótica do direito de autor, o artista (ou sua família, se falecido ele) pode receber o direito de sequência, obviamente se a obra for realmente de autoria do criador anunciado, e é importante conferir esse aspecto no cadastro das obras catalogadas. Por outro lado, se for uma obra falsa, ou uma gravura em vez de óleo, ou ainda uma reprodução de escultura em vez de peça única, o autor pode repudiar a autoria e pedir que seja suprimido seu nome como autor daquela obra, ou ainda pedir a retificação da identificação.
Esses aspectos são comuns em outras áreas artísticas, pois, segundo a lei de direito autoral brasileira, em relação a arquitetura e ao teatro temos que (art. 26) o autor poderá repudiar a autoria de projeto arquitetônico alterado sem o seu consentimento durante a execução ou após a conclusão da construção e (art. 70) ao autor assiste o direito de opor-se à representação ou execução que não seja suficientemente ensaiada, bem como fiscalizá-la, tendo, para isso, livre acesso durante as representações ou execuções, no local onde se realizam.
Após essa longa introdução, aparece muito forte o significado do certificado de autenticidade de obra de arte, tanto artístico, quanto jurídico. No campo artístico, o documento complementa o acervo do artista, contribui para reforçar suas características e estilo, ajuda a evitar falsificações e dá credibilidade à obra, além de manter seu valor de mercado. Uma expertise que resulte num certificado de autenticidade (COA – Certificate of Authenticity) deve descrever a obra, conter ao menos uma foto, especificar suas dimensões, o material e a data da confecção, o nome do artista e se possível a sua origem e trajetória (provenance ou pedigree), incluindo exposições, leilões prêmios, circunstâncias relevantes, bem como título e contato do profissional certificador. A internacionalmente renomada galeria de arte londrina SAATCHI recomenda o uso do COA em seu site[7].
Na área do direito, um certificado de autenticidade realça, ou até atribui, contornos de autenticidade e paternidade a uma obra, fazendo que ela se confirme, ou até venha a ingressar, no rol de criações de determinado artista, legitime sua inserção em coleções públicas ou privadas, justifique o direito de sequência, afaste cópias indevidas, e ainda, principalmente, confira grau de certeza nas transações comerciais e valorize a obra em caso de garantia ou de revenda. O certificado também tem relevância na avaliação da obra em casos de seguro, de transporte e de transmissão por herança ou doação.
Todos esses aspectos fazem com que o signatário do certificado – que se recomenda ser profissional do mundo da arte, ou ao menos grande conhecedor da vida, obra e estilo do artista cuja obra seja certificada – tenha responsabilidade pelo documento que emite, já que, uma vez produzido, com a singular prudência exigida e a correspondente credibilidade, gera uma série de repercussões no mundo artístico, e também jurídico. Na França a doutrina prega a responsabilização civil de quem emita um certificado (Certificat d’authenticité) com erro, que venha a prejudicar uma obra considerada “boa”, ou que venha a denegrir obra autêntica[8].
Venho pregando, faz algum tempo, uma certa padronização dos certificados nas feiras de arte no Brasil, como meio de unificar a forma de apresentação das informações do mercado e dar maior segurança aos consumidores por ocasião das vendas públicas. Há um notório aumento do número de colecionadores de obras de arte no Brasil – principalmente arte contemporânea, de autores ainda vivos – e no mundo, muitos deles principiantes, que precisam saber como funciona o mercado e ter a garantia de recebimento de produtos e serviços de qualidade, o que só faz aumentar a credibilidade do setor altamente sensível.
Para se ter uma ideia da relevância desse documento, alguns falsificadores tentaram adulterar certificados de autenticidade que teriam sido emitidos pelo ICOM – Internacional Council of Museums. Tal fato foi rejeitado em nota no site [9]. Em alguns países, como na Itália, o certificado é obrigatório, conforme estipula o Código de Bens Culturais[10].
Os certificados emitidos por experts de renome, que realmente conheçam o trabalho do autor artista – e não por herdeiros que, só pelo parentesco, possam eventualmente dificultar a montagem séria do cadastro das obras do artista – são fator de inibição de falsificações e consolidação do mercado de arte.
A difusão dessa prática por galeristas, museólogos, curadores, colecionadores, leiloeiros, críticos, jornalistas, os órgãos desse setor na área do poder público, os meios de comunicação e o público em geral tende a aprimorar o mercado, selecionando melhor as obras e os seus integrantes. Há também o caso de Fundos de Investimento em artes, nos quais a certificação é essencial para a sua credibilidade e valorização. Em termos de países, um mercado crescente no mundo é o vietnamita, mas sujeito a fraudes em igual intensidade, como noticiou recentemente o jornal New York Times[11].
Concluindo, o mercado mundial de arte é pouco regulamentado – salvo em relação a venda de peças antigas, protegidas pelas legislações nacionais, e, recentemente os processos de recuperação de obras apreendidas por nazistas – e a arte contemporânea brasileira vem atingindo níveis de prestígio internacional, que se refletem nos preços de artistas de renome, cuja enunciação é desnecessária aqui. A chegada a esse patamar exige a revisão de uma engrenagem, que para ser mais ágil, depende da atualização, principalmente, do setor de empréstimo e comercialização internacional e do tributário.
Os certificados de autenticidade de obras de arte são componente relevante de credibilidade, e precisam integrar de forma natural as transações do setor, acostumando-se os artistas a emiti-los quando das vendas no mercado primário, e os galeristas e leiloeiros quando da comercialização no mercado secundário. Os certificados podem não criar um direito, mas asseguram mais clareza, tranquilidade e credibilidade a artistas, colecionadores, museus, transportadoras, historiadores, galeristas, leiloeiros e todos os integrantes do setor.
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